A Literariedade - Jonathan Culler

A Literariedade - Jonathan Culler

Que é literatura? Esta pergunta, que parece impor-se como a pergunta base dos estudos literários e como o objeto primordial da teoria literária, pode ser compreendida de diferentes maneiras: em primeiro lugar, como uma pergunta sobre a natureza geral da literatura. Que tipo de objeto ou de atividade é a literatura? Para que serve? Por que estudá-la? Qual o seu lugar na diversidade das atividades humanas? Compreendida desta maneira, se trataria de uma pergunta não de definição, mas de caracterização, e isto porque interessaria a todos os que se ocupam da literatura e queriam saber por que se dedicar a esta atividade e não a outra.


Mas o que é literatura? Também pode significar o que distingue literatura das outras coisas: o que é que a distingue dos outros textos, das outras representações? O que a distingue dos outros produtos do ser humano ou das outras práticas? Perguntar-se qual é ou quais são a ou as qualidades distintivas da literatura é colocar a pergunta da literariedade: qual é ou quais são os critérios que fazem de algo literatura?

Apesar do caráter aparentemente central desta pergunta acerca dos estudos literários, temos de confessar que não se chegou a uma definição central de literariedade.

Northrop Frye, em seu livro Anatomia da Crítica, tem razão quando declara que “não dispomos de verdadeiros critérios para distinguir um estrutura verbal literária de uma que não é” (1966,13).

Há várias razões para isso. Se refletirmos um momento, nos damos conta de que há dificuldades de princípio assim como dificuldades empíricas. Existe uma imensa variedade de obras literárias e um romance determinado, por exemplo, Em busca do tempo perdido ou Jane Eyre, pode parecer-se mais com uma autobiografia do que com um soneto, ainda que uma poesia lírica de Burns, de Heine ou de Verlaine se pareça mais com uma canção do que uma obra de teatro de Sófocles. 

Assim, um primeiro problema consistiria em saber se existem propriedades interessantes que estão presentes em todas as obras que denominamos literárias e que as distinguem dos objetos não literários com os quais se parecem. Mas esta pergunta se torna mais difícil em uma perspectiva histórica, por pouco que seja. Segundo um célebre perito em poesia, “a fronteira que separa a obra poética da que não é poética é mais instável que a fronteira dos territórios administrativos da China” (JAKOBSON, 1973, 114). 

Podemos pensar em alguns poemas modernos que em outras épocas não seriam considerados como literatura. Os talk poems do poeta norte-americano David Antin, por exemplo, manifestam um discurso que não pode ser mais comum, sem rimas nem ritmos, sem figuras especiais, e que possui todas as vacilações e repetições da fala cotidiana. Quando do auge do nouveau roman francês, muitos críticos e leitores achavam que essas construções sem personagens a sem as intrigas tradicionais tampouco podiam ser consideradas literatura. Esses textos não poderiam levar o nome de “romance” no século XIX.

Nessas condições, poderíamos chegar à conclusão de que a literatura não é nada além do que aquilo que uma determinada sociedade trata como literatura: quer dizer, um conjunto de textos que os árbitros da cultura – professores, escritores, críticos, acadêmicos – reconhecem que pertence à literatura. Esta conclusão não é muito satisfatória, mas nos servimos de outras categorias da mesma natureza mediante as quais os critérios de definição e delimitação dos objetos culturais nos remetem às opiniões mutáveis de um grupo, grande ou pequeno. Neste sentido, a literatura seria uma categoria como a das más ervas (Ellis, 1974).

As ervas más são um simplesmente um tipo de plantas que uma sociedade não trata cultivar, mas sim de eliminar quando brotam em um lugar em que deve florescer outra coisa. De forma que não haveria qualidades de forma ou de fundo que as más ervas possuiriam. Não há nenhuma essência de “má erva” ou nenhum critério pertinente de delimitação. Aquele que se interessasse por esta categoria, o que teria de fazer não seria buscar a natureza botânica das ervas más, mas levar a cabo investigações históricas, sociológicas e talvez psicológicas, sobre as diferentes espécies de plantas que estão catalogadas como ervas más por grupos ou sociedades diferentes, sem por isso chegar a estar jamais seguro de encontrar um critério geral, nem sequer para uma época determinada. 


Se a literatura fosse uma categoria desse tipo, a literariedade não seria objeto de análise de um teórico, mas unicamente objeto de uma investigação histórica que pretenderia tornar explícitos os critérios utilizados por diferentes grupos que se interessam por ela. Mas em geral, as respostas às perguntas sobre a literariedade não se formulam desta maneira. As próprias dificuldades de definição e de delimitação inspiram e fazem que seja mais interessante a reflexão sobre a natureza da literatura, reflexão esta que é perseguida pelos teóricos, não porque queiram saber que discursos querem excluir ou incluir na literatura, não porque queiram explicitar critérios que tenham regido as inclusões e exclusões de outras culturas ou momentos históricos, mas porque se perguntam quais são os aspectos mais importantes da literatura e porque querem determinar o que é estudar um texto como parte integrante da literatura. Em suma, as definições de literariedade não são importantes como critérios para identificar aquilo que põe em evidência que há literatura [em um texto], mas como instrumentos de orientação teórica e metodológica que trazem à luz os aspectos fundamentais da literatura e que finalmente orientam os estudos literários. Por um lado, a literariedade se define em termos de uma relação com uma realidade suposta, como discurso fictício ou imitação dos atos da linguagem cotidiana. Por outro lado, aponta para determinadas propriedades da linguagem. Embora coincidam em alguns pontos, estas duas respostas devem ser analisadas separadamente e detalhadamente. Haja vista que nem uma nem outra implicam uma resposta historicizante, é necessário proporcionar previamente algumas indicações históricas. 


Para explicar o que é literariedade, o que é esta qualidade suscetível de definir o “literário”, teríamos de compreender o contexto que promoveu a pergunta sobre a natureza da literatura. Obras que denominamos literárias foram criadas há vinte e cinco séculos, mas a ideia moderna de literatura data de apenas dois séculos. Até o século XIX, a literatura e termos análogos em outras línguas européias significavam de uma maneira global “os escritos” e até o “saber livresco”. Nas Briefe die neueste literatur betreffend [Cartas sobre a nova literatura] de Liessinga, publicadas a partir de 1759, a palavra toma um sentido precocemente moderno que designa a produção literária contemporânea. É sobretudo o livro de Mme Staël, De la littérature considerée dans ses reports avec les institutions sociales (1800) [Sobre a literatura considerada em relação às instituições sociais], que marca o estabelecimento do sentido moderno. Mas foi somente com a instituição da crítica literária e o estudo profissional da literatura que a pergunta sobre a especificidade da literatura e, portanto, da literariedade, pôde se estabelecer. Antes de fins do século XIX, o estudo da literatura não era uma atividade realizada de maneira independente: estudavam-se os poetas antigos ao mesmo tempo em que se estudavam os filósofos e os oradores – os escritores de todo tipo – e os escritos que chamamos literários formavam parte de um todo cultural mais vasto. Foi, pois, com a fundação dos estudos especificamente literários que o problema do caráter distintivo da literatura se implantou. Temos que considerar que a pergunta se colocou, não porque se quisesse distinguir o que é literário do que não é, mas porque se queria promover, mediante a separação do “peculiar” da literatura, métodos de análises que permitiriam fazer avançar a compreensão deste objeto e deixar de lado os métodos impróprios que não levavam em consideração a natureza deste objeto.

Assim, foram os formalistas russos, grupo de jovens linguistas e “poeticistas” de Moscou e Leningrado, no início do século XX, os que, inicialmente, apontaram a literariedade (literaturnost) e formularam algumas das grandes linhas do debate sobre esse problema. Roman Jakobson colocava o problema da seguinte maneira: “O objeto da ciência literária não é a literatura, mas a literariedade, é dizer o que faz de uma determinada obra literária” (1921,11). Os críticos literários e os historiadores da literatura, postulava [Jakobson], utilizavam a vida pessoal do autor, a psicologia, a filosofia, em vez de vislumbrar uma ciência literária. “Se os estudos literários querem se converter em uma ciência – declara Jakobson – têm que reconhecer o procedimento (priem) como o seu ‘personagem’ único. Depois, a pergunta principal é a da aplicação, a da justificação do procedimento”

Portanto, a questão da literariedade serve para a atrair a atenção para as estruturas que seriam essenciais nas obras literárias e, em contrapartida, não seriam essenciais em outras obras. Estudar um texto como texto literário em vez de valer-se dele como documento biográfico e histórico, ou ainda como declaração filosófica é, para o analista, concentrar sua atenção no uso de algumas estratégias verbais. Os formalistas tinham “como afirmação fundamental que o objeto da ciência literária deve ser o estudo das particularidades específicas dos objetos literários que os distinguem de outra narrativa” (Eichenbaun, 1927, 25). O problema essencial consiste em encontrar particularidades específicas das obras literárias que sejam suficientemente genéricas (gerais) para manifestar-se na prosa assim como na poesia. 

Esta literariedade possui três características fundamentais: 

1) os procedimentos do foregrounding (evidentes, de primeiro plano) da própria linguagem; 
2) a dependência do texto as relações, convenções e seus vínculos com outros textos da tradição literária; e 
3) a perspectiva da integração composicional dos elementos e dos materiais utilizados em um texto. 

No que se refere ao primeiro ponto, o formalista russo Shklovski declara que “a língua poética difere da língua prosaica (cotidiana) pelo caráter perceptível [oshchutimost] de tal construção” (Eichenbaum, 1972, 32). Para o checo Mukarovský, um dos fundadores da escola de Praga, que se situa na continuidade do formalismo russo, a linguagem poética não se define por sua beleza, nem por seu ornamento, nem por sua afetividade, nem por seu caráter metafórico, nem por sua singularidade, mas pela sua manifestação (aktualisace, foregrounding) (1977,3,4). Há várias maneias de tornar perceptível a linguagem de modo que o leitor não receba o texto como um simples meio transparente de comunicar uma mensagem, mas que surja envolvido pela materialidade do significante e outros aspectos da estrutura verbal. O desvio ou aberração linguística – a criação de neologismos, as combinações insólitas de palavras, a eleição de estruturas não gramaticais ou aberrantes no plano semântico – são formas de “pôr em evidência” que se utiliza, sobretudo, na poesia, mas que se encontram também na prosa, como no início de Finnegans Wake: “Eins within a space and a wearrywide space it was wohned a Mookse. The onesomeness eas alltonely, archunsitslike, broadyoval, and a Mookse he would walking go.”. O fim e o resultado desta forma de evidenciação é o que os formalistas russos chamam de desfamiliarização [estranhamento] (ostraniere) ou desautomatização da linguagem, que produz a percepção dos signos enquanto tal. Isto se pode obter mediante o recurso a diferentes classes de paralelismos e de repetições. No plano do significante, a rima, a assonância e a aliteração criam o efeito de um objeto muito estruturado como nos versos de Valéry:

Dormeuse, amas doré d’ombres et d’abandons, 

Ton repos redoutable est chargé de tels dons… (“La Dormeuse”) 
[Dormente cúmulo dourado e sombras e abandonos, / teu repouso terrível está carregado de tuas dádivas...]

Os ritmos, regulares e irregulares, as repetições de categorias sintáticas que criam paralelismo, todo tipo de estribilhos e de estruturas fechadas, fazem perceptível e linguagem em outros meios. As estruturas do relato (paralelismos, repetições e detalhes, construção “escalonada”) produzem efeitos herméticos, e se considera que expressam que se trata de um discurso bem construído em que cada detalhe deve ser levado a sério. Além disso, uma linguagem figurativa que exige esforço de interpretação serve também para significar a literariedade. Com efeito, a linguagem literária (obraz) que pretende criar uma nova percepção colocando o objeto em uma perspectiva insólita, muitas vezes é tomada como o elemento mais comum, o mais expandido da literariedade. Até o romance realista serve-se de imagens novas para mostrar: “os tetos de palha, como gorros enterrados até os olhos...” (Fleubert, Madame Bovary). Em outro plano a perspectiva realista eleita é o elemento que vai atualizar o efeito de desfamiliarização. Em “Jolstemer”, de Tolstoi, o relato é narrado por um cavalo e é por meio dele que os objetos tornam-se singulares graças a esta percepção inusitada e à tematização da linguagem e da interpretação: o narrador observa, por exemplo, que as palavras “meu cavalo”, quando se referem a ele, parecem-lhe tão estranhas como “minha terra”, “meu ar” e “minha água”

Pôr em evidência os signos linguísticos e os meios de representação pode fazer da literatura uma crítica dos modelos semióticos mediante o costume que temos de fazer o mundo inteligível. Assim, pois, o nouveau roman foi reconhecido por sua crítica aos modelos romanescos tradicionais, tais como os de personagem e os do princípio de causalidade, mediante os quais interpretamos o mundo quase sem saber, da mesma forma que a poesia tem tratado muitas vezes de romper as associações que considera “normais”. Mas há uma ressalva a fazer em relação à literatura como desfamiliarização. No plano linguístico, de fato, a literatura destaca-se não só por figuras ou combinações insólitas, mas também pela linguagem “elevada”, que consiste, em parte, em utilizar fórmulas que perderam sua força inovadora: “the azure vault of heaven” [“a abóbada azul do firmamento”] percebe-se de imediato como literário porque o emprego do adjetivo ativa no leitor a ideia da literatura enquanto enunciação elegante e perifrástica de sentimentos elevados. Dizer “quarenta velas” em vez de “quarenta navios” é uma figura literária convencional. Cada língua possui algumas palavras e convenções que pertencem a uma linguagem arcaica e elevada e que indicam que têm a ver com a literatura, mesmo quando a paródia ou destruição desta mesma linguagem seja também discurso literário.

Não obstante, nos expomos a um importante obstáculo quando tratamos de limitar o efeito de literariedade de um texto à presença de um repertório de procedimentos linguísticos, pois todos esses elementos e procedimentos podem ser encontrados em outra parte, em textos não literários. O próprio Jakobson reconhece que “as aliterações e outros procedimentos eufônicos são utilizados pela linguagem falada no cotidiano. No ônibus escutam-se brincadeiras baseadas nas mesmas figuras nas quais a poesia mais sutil, e os boatos frequentemente estão compostos de acordo com as leis que regem a composição das narrativas curtas” (1960, 353). 

Que quer dizer isto? Esta definição retoma em parte a noção tradicional de que o objeto estético tem um valor em si, não está submetido a quaisquer fins utilitários, mas possui o que Kant em sua Crítica da razão denomina a “finalidade sem fim” (Zweckmässigkeit ohne Zweck). Livre das delimitações do discurso cotidiano, histórico e prático, a obra literária situa-se de outra maneira (como veremos mais adiante) e pode produzir ambiguidade, pode constituir-se como estrutura autônoma ligada ao exercício da imaginação do autor e do leitor. Esta liberdade é que põe em jogo algumas idéias mestras da literariedade: a idéia, por exemplo, de um discurso polivalente, no qual todos os sentidos de uma palavra (sobretudo as conotações) podem entrar em jogo, ou a de um discurso portador de um sentido oculto, indireto e complementar, que seria o sentido mais importante. 

Assim, pois, contemplamos mais de perto a noção a função poética da linguagem como o tom da linguagem por sua própria conta. Não se deve compreender tal coisa como uma autonomia, mas como uma relação específica com outros elementos constituintes da situação linguística. Se agendo uma entrevista com um amigo, às seis da tarde, ou de manhã, em um café, o que é essencial é que, antes de tudo, a mensagem seja emitida com seriedade por mim e vá destinada a ele pessoalmente, quer dizer, que não se trate de uma brincadeira, nem de um exemplo gramatical, que a mensagem não esteja destinada a nada mais, e que a hora e o lugar do encontro estejam fixados em referência a um contexto geográfico e temporal em que nos situamos. A forma da frase e as palavras específicas de que me sirvo são menos importantes, como também são as relações com outros convites emitidos por mim e por outras pessoas antes desta. Em contrapartida, em um poema como “Convidando um amigo para jantar”, do poeta inglês Ben Johnson, o que se produz é todo o contrário: aqui, o que mais importa é a estrutura das imagens e dos ritmos no texto; o contexto no qual se insere a mensagem é o contexto de um gênero literário, um certo lirismo do cotidiano, do que se desprende, no tom e no movimento do poema, uma visão dos valores que sustentam o modo de vida que se evoca. Shklovski fala da literatura como do “caminho no qual o pé sente a pedra, o caminho que regressa sobre si mesmo” (1919,115). A obra não está dirigida a um fim, mas isto não quer dizer que careça de determinações. Na realidade, a obra se refere a seus próprios meios, ou seja, a evidência da linguagem em um texto literário é uma maneira de desprendê-lo de outros contextos (do momento e das circunstâncias práticas do enunciado), de fazer do ato de linguagem que o texto pretende cumprir (como o convite) um procedimento literário e situá-lo em um contexto de textos e de procedimentos literários. 

Voltamos agora, portanto, às afirmações de Jakobson para quem os estudos literários farão do procedimento seu personagem único: qualquer discussão que se centra na literariedade não considerará o procedimento como um meio de expressar uma mensagem qualquer, mas como protagonista o sujeito do discurso literário.

Em um determinado nível, o texto nos conta uma aventura puramente literária (formal). Então temos de nos perguntar: o que faz aqui este encadeamento? Em que se converte o soneto? Em que consistem as combinações de imagens e quais são os seus efeitos? Em vez de tratar um elemento formal – a forma do soneto, por exemplo – como um meio para expressar a visão de um amante, pode-se contemplar este conteúdo como o meio de explorar ou de fazer avançar ou desviar o soneto. Este aspecto da literariedade, que tende a isolar o texto dos contextos práticos e históricos da sua produção, redefine, por oposição, o contexto como o contexto específico da literatura. Desse modo, escrever é inscrever-se na tradição literária e tem-se que explicar as obras de acordo com esta única perspectiva. 

Toda obra literária se cria em referência e em oposição a um modelo específico que fornecem outras obras da tradição. As obras estão determinadas por estruturas convencionais – por exemplo, os procedimentos para estabelecer a intriga. Shkolovski demonstra que “a convencionalidade mora no miolo de toda obra, posto que as situações estão livres de suas relações cotidianas e se determinam segundo as leis de uma trama artística dada” (1911, 118). Como indicamos, a forma da obra está determinada pelas formas literárias preexistentes. 

À medida que a literatura, em seus vínculos com outros discursos literários, é um comentário ou uma reflexão sobre a literatura, isto nos ajuda a ver o papel das estruturas linguísticas e retóricas que tratamos anteriormente em nossa análise da literariedade como evidência da linguagem. Constatamos que o foregrounding [primeiro plano] apenas pode chegar a ser um critério suficiente do literário, visto que há repetições e aberrações também em outros textos. É, melhor dizendo, o modo de integração destas estruturas – o estabelecimento de uma interdependência funcional e unificadora de acordo com as normas da tradição do contexto literário – o que caracteriza a literatura. São os três níveis ou os tipos de integração que devemos contemplar. 

Em um primeiro nível está a integração das estruturas ou das relações que em outros discursos não têm função alguma. Quando marco um encontro, na forma de minha mensagem se pode ignorar uma assonância, uma aliteração ou um paralelismo. Precisamente porque o texto literário não é um discurso que comunique informações práticas, mas porque está vinculado a uma situação de comunicação peculiar, na qual reina a convenção da importância dos detalhes e das estruturas linguísticas, [ele] significa em vários níveis de análise. Em um poema, qualquer paralelismo coloca a questão das relações semânticas entre seus componentes. Ali onde domina a função poética da linguagem, “a similaridade se converte no procedimento constitutivo da sequência” (Jakobson, 1960, 358) – procedimento constitutivo no momento para o autor, que escolhe e reúne os elementos em virtude de qualquer similaridade (fonológica, morfológica, sintática ou semântica) e para o leitor, que deve considerar em que medida uma espécie de equivalência se transforma em outra. Na “Chanson d’automne”, de Verlaine, as repetições de sons e de estruturas rítmicas produzem aproximações nos níveis semântico e temático:

Les sanglots longs
Des violons
De l’automne
Blessent mon caeur
D’une langueur
Monotone

[Os grandes soluços/ Dos violinos/ Do outono/ Ferem meu coração/ com uma languidez/ Monótona.]

O resultado desta estruturação – efeito propriamente literário – consiste em fazer funcionar a capacidade da linguagem para produzir pensamento. As comparações criam a ideia, por exemplo, de um outono relacionado com os violinos, a ideia de uma relação entre a languidez da estação, os soluços e talvez os ventos violentos que podem gemer como violinos. Em suma, a primeira classe de integração é a produção de efeitos semânticos e temáticos mediante estruturas formais.

A integração em segundo nível é a da obra de arte completa: a convenção pela qual a obra literária há de ser um todo orgânico (Ingarden, 1931) e a que, em consequência, o sabor da interpretação consista em buscar e demonstrar essa unidade, é uma das noções fundamentais da literariedade. Os formalistas russos falam da “dominante” que se apresenta em forma de um elemento ou de uma estrutura unificadora (às vezes uma figura, como o quiasmo) localizável em todos os níveis (Jakobson, 1973, 145). Mas é pouco frequente encontrar um só motivo que encarne a literariedade deste modo. O essencial é que se suponha esta unidade e engendre um esforço para perceber como um momento ou um elemento do texto pode relacionar-se com outros, transformá-los, inclusive confrontá-los, e criar uma estrutura de conjunto. Esse aspecto da literatura se põe em evidência de maneira surpreendente em textos de aparência fragmentária que exigem um esforço especial do leitor. “Papyrus”, de Ezra Pound, consiste em três versos fragmentários:

Spring.../ Too long…/ Gongola… [Primavera…/Muito tempo…/Gongola…]
As convenções da literariedade incitam os leitores a conferir uma totalidade formal a este texto e a outorgar uma significação às “ausências” que se revelam nele. Se tomamos “Gongola” como um nome próprio e se supomos uma relação entre Gongola e o que fala, as lacunas do poema acabam funcionando como signos da ausência, da carência, sobretudo na primavera. 

Mas é a presunção de unidade – este segundo nível de integração – que faz que surjam as dissonâncias e se produzam muitos efeitos literários deste gênero. Em um terceiro nível de integração, a obra significa muito em relação ao contexto literário: em sua relação com os procedimentos e convenções, com os gêneros literários, com os códigos e modelos pelos quais a literatura permite aos leitores interpretar o mundo. Neste nível, o texto literário oferece sempre um comentário sobre uma leitura implícita (Iser, 1972) ou pode se interpretado como uma alegoria da leitura, uma reflexão sobre as dificuldades da interpretação (De Man, 1979). A possibilidade de ler um texto literário como uma reflexão sobre sua própria natureza e sobre a natureza da literatura, faz da literatura um discurso auto-reflexivo, um discurso que, implicitamente (por causa de sua situação de comunicação adiada), conta algo interessante sobre sua própria atividade significativa. Isto não quer dizer que se explique o texto inteiramente ou se domine plenamente: pelo contrário, as investigações recentes indicam que há sempre aspectos do funcionamento do texto que escapam à reflexão ou à definição. Nesse sentido, o tema profundo da literatura sempre é a impossibilidade da literatura, essa perseguição do absoluto literário é de certa maneira o fracasso (Blanchot, 1955). Mas para voltar às formas mais familiares que traduzem a prática mediante a qual os autores buscam renovar e fazer progredir a literatura, essa prática é uma crítica da literatura – da noção de literatura que eles herdam - e nisto a literariedade é um tipo de reflexividade.

O atual debate sobre literariedade oscila entre uma definição das propriedades dos textos (da organização do texto) e uma definição das convenções e pressupostos com os quais se aborda o texto literário. Estas duas perspectivas não são de modo algum idênticas, nem tampouco se pode supor que estejam em contradição. Na realidade, a natureza da linguagem e dos fenômenos culturais exige essa alternância de perspectivas: só em relação a um conjunto de convenções, em um ou outro nível, é que uma série de marcas ou uma sequência sonora estão dotadas de propriedades. Não obstante, essa alternância de perspectivas cria problemas para uma delimitação da literatura. Por uma parte, está claro que a noção de literariedade é uma função das relações diferenciais do discurso literário e de outros discursos, mais que uma qualidade intrínseca. Se se toma um fragmento de prosa periodística (narrativa jornalística) e se dispõe em uma página em forma de poema, vemos surgir algumas qualidades que estão no texto, mas que são uma função das novas convenções que se aplicam a ele:

Hier sur la Nationale sept 
Une automobile
Roulant à cent à l’heure s’est jeteé
Sur un platane
Ses quatre occupants ont été
Tués. (Genette, 1969, 150)

[Ontem, na estrada nacional sete,/Um automóvel/ A cem por hora lançou-se/Contra um plátano/Seus quatro ocupantes foram/Mortos.]

Os diversos dados mudam de aspecto. “Ontem” já não se relaciona somente com uma data, mas com todos os “ontens” e, em consequência, conota um acontecimento frequente, não extraordinário. “Lançou-se” adquire uma nova força, como se o carro tivesse vontade própria, e se escuta o “esmagamento” do plátano. O estilo de reportagem e a escassez de detalhes podem inclusive indicar uma atitude de resignação. Em outro nível, se poderia entender na eleição do tema um comentário sobre o lirismo hoje, em que a tragédia adquire esta forma banal. Estas interpretações literárias são o resultado de uma orientação crítica que contempla esse discurso como se fosse literatura. Precisamente porque isso é possível, é necessário refletir sobre o que é literariedade.

Mas, por outro lado, cada vez que se identifica uma certa literariedade, se constata que estes tipos de organizações encontram-se em outros discursos, até quando não se trata esse discurso como se fosse literatura. Jakobson mesmo cita como exemplo da função poética da linguagem um lema norte-americano da campanha presidencial de Eisenhower em 1954, “I Like Ike” [Eu gosto do Ike]: há aqui uma repetição paronomástica muito acentuada, na qual o sujeito do gosto e o objeto do gosto estão inteiramente envoltos pelo ato de gostar (Like contém I e Ike), como se fosse inevitável, inscrito até na língua, que “I like Ike” (1960,357). Temos que observar que em toda uma série de investigações teóricas atuais – em campos tão diferentes como a antropologia, a psicanálise, a filosofia e a história - têm encontrado uma certa literariedade em fenômenos não literários. Os estudos de Sigmund Freud e de Jacques Lacan demonstraram, por exemplo, o papel constitutivo no funcionamento da psique de uma lógica da significação mais diretamente observável na poesia. Jacques Derrida mostra a centralidade inquestionável da metáfora no discurso filosófico. Claude-Levi Strauss descreveu uma lógica do concreto que atua nos mitos e no totemismo, lógica que se parece com o jogo de oposições (macho/fêmea, terrestre/celeste, moreno/loiro, sol/lua) da temática literária. É como se cada procedimento e cada espécie de estrutura que poderiam parecer essencialmente literários, pudessem ser encontrados também em outros discursos. Esta constatação seria desesperante se o objetivo das investigações sobre a natureza da literatura consistisse unicamente em distinguir a literatura do que não é, mas à medida que a finalidade consiste em identificar o que é importante na literatura, a busca da literariedade nos mostra até que ponto a literariedade pode iluminar outros fenômenos culturais e revelar mecanismos semióticos fundamentais.

A outra concepção da literariedade, representada por velhos lemas como a fórmula de Sir Philip Sydney segundo a qual “o poeta não afirma nada e portanto não mente”, põem a tônica em uma relação particular do discurso com a realidade: estas proposições referem-se a pessoas e acontecimentos imaginários mais que históricos. Este caminho não consegue captar o critério distintivo da literatura haja vista que no discurso há outras instâncias da ficção. Enunciados que pertencem à linguística e à filosofia põem em cena personagens fictícios – Le roi actuel de la France est chauve, John is eager to please [O rei atual da França é calvo. João está ansioso por agradar] – como fazem toda parábola e todo cenário hipotético. Mas estas observações não minimizam a importância dos esforços para definir as relações da literatura com a realidade. A ficcionalidade não se limita a personagens, situações e acontecimentos imaginários. Não é [dizer] unicamente que Anna Karenina, Don Quixote e Hans Castorp não existam; um “eu” de um poema não designa tampouco um indivíduo empírico em um dado momento, mas um sujeito criado no e pelo poema: “J’ai plus de souvenirs que si j’avais mille ans”, o primeiro verso de “Spleen” de Baudelaire, não é uma proposição sobre o Charles Baudelaire que escreveu Flores de Mal. Neste sentido, a obra literária é um acontecimento semântico: projeta um mundo imaginário, que abarca os narradores e os leitores implícitos. Mas esta concepção de literatura como ficção não é de todo exata, posto que as obras literárias também põem em cena realidades históricas e psicológicas – Napoleão, a batalha de Waterloo, as condições de trabalho dos trabalhadores das minas, o sentimento de ciúmes de um menino mimado etc. Podemos então dizer que a obra se refere mais a um mundo possível entre vários mundos possíveis do que a um mundo imaginário. Para expor melhor as implicações desta ficcionalidade, alguns teóricos, em vez de dizerem que a obra se refere a um mundo de ficção, querem dizer que o ato de referência é em si fictício. Como ato de linguagem, a obra literária é imitação de um ato de linguagem “sério”, na qual o locutor é responsável pelas proposições que emite, pelas promessas que fez etc. Por esta perspectiva, a ficção se entende em relação com o “discurso natural” ou não fictício o qual imita. “A ficcionalidade essencial das obras literárias não se há de descobrir na ausência de realidade dos personagens, objetos e acontecimentos aos quais se referem, mas na realidade do próprio ato de referência” (Smith, 1978, 11). Assim, em um romance, é o ato de narrar os acontecimentos, de descrever os personagens e de referir-se aos lugares é que é fictício. O romance representa o ato de alguém que descreve, que conta feitos etc. A mimese da literatura não consistiria tanto na imitação dos personagens e dos acontecimentos como na imitação dos discursos “naturais”, dos atos de linguagem “sérios”. Os romances seriam as instâncias fictícias de diversos tipos de livros - crônicas, diários, memórias, biografias, histórias e até coleções de cartas. O novelista “faz crer que escreve uma biografia, mas o que faz é fabricar uma” (Smith, 1978, 30). O teórico espanhol Martinez-Bonati vai mais longe ao dizer que os signos chamados linguísticos de uma obra, na realidade, são imitações fictícias e não verdadeiramente linguísticas, dos signos propriamente linguísticos (1981,81).

Há romances que efetivamente “nos levam a crer” que são biografias ou coleções de cartas, ou que põem em cena um personagem que simula contar sua vida, mas na maior parte dos casos o texto literários, a ficcionalidade não é de modo algum a qualidade essencial que distingue um romance de uma biografia. Smith entende que ao escrever A Morte de Ivan Ilich Tolstoi “faz crer que escreve uma biografia, mas na verdade fabrica uma”, embora ao contrário Tolstoi não simule nada. Longe de fabricar um escrito que pareça uma biografia, Tolstoi vale-se de procedimentos que seriam ilegítimos em uma biografia e que são próprios do romance. Ilich está escrito em terceira pessoa e, naturalmente, vemos o mundo segundo o ponto de vista do autor e [também] seguimos o ponto de vista do protagonista no momento de sua morte. Käte Hamburger (1968) distingue a literatura dos demais discursos pela capacidade que ela tem de apresentar um mundo, incluída a experiência anterior, a partir do ponto de vista de um personagem que está representando em terceira pessoa. O indício desta literariedade é um tipo de frase propriamente literária, “Morgen war Weihnachten” [Amanhã era natal], na qual os elementos dêiticos (manhã, ontem, aqui, lá, você) estão definidos em relação a uma subjetividade (do personagem) que está situado no passado, mas no presente da enunciação. Martinez-Bonati refere-se também a modos de discurso da ficção que não são a imitação de um ato cotidiano supostamente “real” (1981, 104). Assim, há boas razões para supor que a literatura não é uma imitação fictícia dos atos de linguagem não fictícios e “sérios”, mas um ato de linguagem específico como, por exemplo, contar uma história. 

Por este caminho chegamos a uma conclusão que já foi abordada no princípio de outra forma: que o discurso literário para possuir condições de enunciação diferentes de outros atos linguísticos, se relaciona com condições específicas. Mas quais são essas condições e, em particular, qual é a relação entre estes atos de linguagem do relato literário e dos relatos não literários? Pergunta essencial para uma literatura vinculada à ficcionalidade. Mary Louise Pratt, que se opõe à ideia de uma linguagem literária distinta, insiste na importância que teria contemplar as narrações literárias como membros de uma classe de “textos narrativos de exibição” [narrative display texts], classe que abarcaria a todo relato de acontecimentos apresentados como insólitos, interessantes, destinados a divertir, e nos quais se consideraria que o destinatário reconhece que a pertinência do relato não está nas informações que este propõe, mas no fato de que seja “contável” [tellable] (1977, 148). Nesta classe, os relatos literários se beneficiam dos mecanismos da seleção - edição, crítica literária, ensino – que criam, frente a estes relatos, “um princípio de cooperatividade hiperprotegida” [hyper-protected cooperativa principle] e permitem ao leitor acreditar que podem resultar dele uma comunicação interessante. Para compreender este princípio de cooperatividade, temos que notar que se pressupõe uma cooperação que sustenta e faz possível a comunicação comum: assim, em geral, pressupõe-se que nosso interlocutor se coloca em uma atitude de cooperação e que sua resposta será pertinente com respeito à questão proposta (se me convidam ao cinema e eu respondo “faz um bom dia”, o princípio de cooperatividade nos autoriza a encontrar a pertinência dessa resposta). Em nossas relações cotidianas, às vezes decidimos [coisas] tão apressadamente que os detalhes e as digressões do relato que alguém nos faz não são pertinentes e que nosso interlocutor viola o princípio da cooperatividade. Mas em literatura, este princípio está “hiper-protegido”, no sentido de que pressupomos a pertinência e o valor dos momentos obscuros, anormais e digressivos. Quando o relato literário parece que não obedece às regras da comunicação eficaz, é que está a serviço de uma comunicação diferente e indireta. Teríamos que acumular uma imensa soma de incompreensões e de frustrações frente a um texto para que podermos decidir que não há solicitação de comunicação cooperativa, pois em literatura até a impertinência dos detalhes pode ser um componente significativo da arte. Em suma, o que distingue A Morte em Veneza do relato da morte de um homem mais velho que desejava um rapaz é sobretudo que temos boas razões para supor que o primeiro relato será mais rico, complexo, “valerá a pena” ouvi-lo ou lê-lo, terá uma unidade e demais propriedades da literariedade das quais nos ocupamos anteriormente.


Portanto, vemos que uma discussão sobre a ficcionalidade dos atos literários de linguagem nos levam a essas pressuposições da literariedade que nos fazem buscar e encontrar na obra uma organização complexa e intensa da linguagem. Isto não quer dizer que tenhamos resolvido o problema da literariedade; não encontramos um critério distintivo o suficiente que possa definir, o que significa simplesmente que todas as buscas que procura isolar os elementos e as convenções determinantes para produzir literatura coincidem e propõem juntas meios importante para os estudos literários.

In ANGENOT, Marc et alii. Teoria Literaria. Madrid: Siglo veintiuno editores: 1993, pp. 36-50.

Tradução: Manoel Francisco Guaranha.

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